terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Incapacitação x Vagabundagem


Sou neuropediatra. Meu trabalho é assistir as crianças e adolescentes em relação às doenças do sistema nervoso. Lido, entre outros problemas, com pessoas acometidas de problemas que prejudicam o desenvolvimento das habilidades escolares, como ler, escrever, calcular e, por conseguinte, a inserção num mercado de trabalho intelectualmente complexo.

Avaliação de habilidade só pode ser feita através da comunicação e observação. Se alguém me confirma que viu uma chave que eu lhe mostre, concluo que ele reconhece visualmente uma chave; se responde a uma pergunta, concluo que entende minhas palavras, e aí por diante. Esta é a visão científica. Eu pesquiso sinais de doença. Lido, porém, com as mães e os pais dessas crianças, que estão no momento da consulta vivendo uma luta interna entre querer saber o grau de limitação dos filhos e valorizar os sinais de capacidade dos mesmos. Ocorreu, então, às vezes, a situação de eu perguntar para a mãe de determinada criança com grave sequela neurológica “o que seu filho entende?”, e esta responder “ele entende tudo”, por conseguir, por exemplo, sorrir quando um parente se aproxima ou chorar quando está onde não gosta. Quando, porém eu realizava alguns testes que necessitavam que o paciente me confirmasse o que viu ou ouviu ou sentiu, este não era capaz de responder, e eu deveria concluir que a criança “entende muito pouco”. A diferença entre “entender tudo” e “entender muito pouco” não está apenas na compreensão coloquial e técnica do verbo “entender”. Está na atitude familiar exaltadora das capacidades dos filhos e seu amor incondicional. A compreensão técnica do médico não é em si mesma superior à compreensão familiar. Serve para investigação de doenças. Para tudo o mais, as mães e pais estão corretos, por vários motivos que não cabe discutir nesse texto (a quem se interessar pelo assunto do desenvolvimento cerebral dos bebês sugiro a reportagem “Aurora da Vida”, da revista National Geografic de Janeiro de 2015, atualmente nas bancas).
Tem-se, porém, hoje em dia a discussão sobre “Políticas afirmativas” Procurei na internet a definição de “políticas afirmativas” e encontrei a seguinte: “Ações afirmativas são políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão sócio-econômica no passado ou no presente” (http://gemaa.iesp.uerj.br/index.php?option=com_k2&view=item&layout=item&id=1&Itemid=217).
Os guerreiros que se apresentam para mim no meu trabalho são as famílias de crianças com sequelas neurológicas que lutam para acompanhar os colegas no aprendizado escolar e conseguir a dignidade de uma atividade laboral. Ressentem-se com termos como “incapaz”, “sequelado”, “em estado vegetativo”, “deficiente”, que algumas vezes sou obrigado a escrever, para ser compreendido, em laudos solicitados por escolas ou pelo INSS. Como posso manter a reverência, respeito, compaixão e admiração por essas crianças e suas famílias e ao mesmo tempo admitir que VAGABUNDOS com plena capacidade de estudar e trabalhar pleiteiem o dinheiro que pagamos de impostos afirmando que são “pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão sócio-econômica” sem que a raiva me cause uma gastura? Como posso, com a formação cristã que tive (embora eu não seja religioso), recebendo o ensinamento de “não dê o peixe, e sim a vara de pescar”, aceitar essa política que, com o belo nome de “afirmativa”, na verdade, é a da PILANTRAGEM?
Os pacientes da minha especialidade, aliás, não são nem os mais incapacitados da prática médica. Junto com muitos colegas médicos, comungo da opinião que as doenças psiquiátricas em que a pessoa perde o contato com a realidade, como a esquizofrenia, são as mais incapacitantes. Estas dificultam ou mesmo impossibilitam, além do estudo, trabalho e cuidados pessoais como várias doenças, também o convívio social. Mesmo para os esquizofrênicos, aliás, a autoestima, ocupação do tempo, o convívio e o autossustento que só conhece quem tem orgulho de ganhar a vida com o suor do próprio rosto, é recomendado e buscado há tempos pelos assistentes sociais, enfermeiros, psicólogos e médicos que os assistem. O livro “Longe da Árvore” (de autoria de Andrew Solomon, editora Companhia das Letras, 2013, pág. 399) cita a frase do psiquiatra e pesquisador Stephen Marder sobre a esquizofrenia: “Não conheço nenhum tratamento tão eficaz quanto um emprego”.
Arthur Jorge de Vasconcelos Ribeiro
arthurjorge_ribeiro@hotmail.com
11/01/2015

Autorizo a transcrição desse texto por qualquer meio, desde que na íntegra e com citação da autoria.

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